Milton Dias: "De cada vez que dizemos ‘agora não posso’, estamos a comprometer um possível diálogo na adolescência"

17 Sep 2019

No mês de agosto, o sociólogo Milton Dias respondeu a algumas perguntas para o jornal Região de Cister, a propósito do tema "Descobre o teu lado +pessoal". São palavras conhecedoras que se sucedem umas às outras, numa leitura que deveria ser obrigatória para todas as pessoas, jovens e menos jovens.

Qual é a "linha" que separa o lado + pessoal do lado + social dos jovens? O que podemos considerar por "lado + pessoal"?
O “lado + social” será, porventura, aquele que remete para momentos de extroversão sendo que, por oposição, o “lado + pessoal” está reservado à intimidade e, maioritariamente, às ‘dores’ de ser adolescente. Aquelas pelas quais todos fomos passando mas que, curiosamente, nos fomos esquecendo, remetendo-as para um espaço de incompreensão e julgamento que nos separa, inevitavelmente, dessa faixa etária que apelidamos de incompreensível.
Saudavelmente, a “linha” que separa ambos os lados será, provavelmente, o desejo de ‘não violação’ dessa intimidade, da preservação de algo que funciona como desconhecido para o outro e que acaba por alimentar precisamente a curiosidade de descobrir e ser descoberto, fundamentais na adolescência.
De forma desvirtuada o “lado + pessoal” será aquele que sofre e o “lado + social” traduzir-se-á na tentativa da busca da aparência para provocar a ilusão de que “tudo está bem”. Aqui, a “linha” que separa é aquela que tem origem numa educação baseada em silêncios, tabus e castração emocional.
Depois temos as redes sociais (facebook, instagram, twitter, snapchat…) que possibilitam ou permitem que, virtualmente, cada um revele ou deturpe o seu “lado + pessoal”, expondo-o socialmente. Neste caso, a “linha” passa a ser muito ténue, possibilitando a ampliação de fenómenos e manifestações de desonestidade e mentira acerca da individualidade.

Qual a importância do diálogo e da partilha na abordagem de temas + pessoais? Com quem os jovens o devem fazer?
O ideal seria fazê-lo com quem se sentem mais à vontade e tendo a certeza de que não iriam ser julgados à partida, sendo que a família nuclear, além dos amigos, deveria ser incluída nessa equação. No entanto, caminhamos a passos largos para núcleos familiares em que os valores associados às questões emocionais e aos sentimentos estão a ser cada vez mais desvirtuados e convertidos em valores exclusivamente materiais. O paradigma do ser está a ser substituído pelo paradigma do ter que, por sua vez, dá origem a enormes vazios emocionais que têm que, naturalmente, ser preenchidos. E aqui começa o problema e a necessidade de recorrer a técnicos especializados. A grande questão é que, na maioria das vezes, o problema não está na criança, no adolescente, no jovem, mas sim no adulto que não acompanhou devidamente o seu crescimento e não permitiu ou incentivou o diálogo e a partilha.

Qual deve ser o comportamento dos pais no acompanhamento destes temas ao longo do crescimento dos filhos?
Escuta ativa aliada a uma espécie de omnipresença, traduzidas em momentos de qualidade, no estar lá quando efetivamente é necessária ajuda, sem comprometer e incentivando a autonomia. A preocupação com a distinção do ‘choro’ deve ser uma constante da vida e que se inicia no berço. Qualquer adolescente necessita de tempo para se fazer entender e, nos dias de hoje, a falta de tempo é a desculpa mais utilizada para não acompanhar devidamente o crescimento dos filhos. De cada vez que dizemos ‘agora não posso’, após uma solicitação de uma criança, estamos a comprometer um possível diálogo na adolescência.

Como deve ser contornado o medo ou a vergonha dos jovens na partilha dos temas + pessoais?
Se a minha infância foi repleta de momentos familiares em que predominou o silêncio, em que a inexistência de partilha de emoções reinou, onde os tempos e os espaços foram ocupados pela superficialidade na abordagem daquilo que me preocupava, como podes ambicionar a que partilhe algo contigo ou não sinta receio ou vergonha ao faze-lo? Como podes não querer que chegue a casa e me feche no quarto sem antes te dar um pseudo tranquilizante “correu tudo bem” para que tudo comece e acabe ali, naquele instante? Quando olhamos à nossa volta aquilo a que mais assistimos, principalmente em ambiente familiar e escolar, é a um premeditado, conveniente e assustador silêncio. Premeditado, pois, desde sempre tentamos sufocar as emoções, calar o choro, conveniente porque as crianças ao não fazerem barulho estão a ser “bem-educadas” e assustador porque criança que é criança faz barulho, suja-se, rebola no chão e, principalmente, inquere o adulto constantemente. Tudo se estimula.

Temas como homossexualidade, obesidade e violência no namoro ainda estão associados a preconceito. Depende dos jovens desmitificá-los?
O preconceito tem vindo a acompanhar a humanidade desde sempre. A expressão da diferença incomoda, por muito que todos a vivenciemos de uma forma ou de outra. Imagina que cresces num ambiente em que não te ensinam (por desconhecimento), não te estimulam (por receio) ou, pior, não te permitem (por preconceito e conveniência) abordar aquilo que consideras de mais sensível na tua vida… As hipóteses ficam reduzidas, por um lado, a guardares para ti e ires acumulando até transportares um fardo emocional demasiado pesado, que se pode tornar tão sufocante quanto perigoso ou, por outro lado, a procurares os teus pares que são aqueles que estão contigo todos os dias e sabem todos de tudo, apresentando-te como solução, na maioria das vezes, o caminho mais fácil, consequentemente mais turbulento, para esqueceres os teus problemas.
Depende de todos nós proporcionar o espaço necessário para que cada um se sinta, em primeiro lugar, respeitado e escutado, consequentemente, apoiado e, se possível, compreendido. Cabe aos jovens, sê-lo; os outros, jamais deverão esquecer que o foram sem querer impor as suas experiências e, respetivas, consequências, não esquecendo que ao fazê-lo estamos a transportar todas as nossas crenças e vivências considerando-as, erradamente, como “aquelas que servem de exemplo”.